Atravessar os Avessos

Jéssica Carvalho
Extra Literário
Published in
5 min readMar 5, 2022

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Antonio Obá, performance, Delfina Foundation, 2017 | Créditos de imagem: Tim Bowditch. Mesmo artista da capa do livro de Tenório. Escolhi essa foto porque ela me remeteu ao que fiz nesse texto.

Escrever falando com alguém, dirigindo pensamentos em frases, fragmentos de memória, de momentos vividos, de afetos trocados, lembrando gestos, como se tudo fosse um curta-metragem. Como se fosses pedaços de sonho. Escrever para alguém que está ausente. A escrita é sempre uma ação solitária, uma conversa de uma pessoa só. Escrever para lidar com o luto, para “me curar da falta daquilo que você, repentinamente, deixou de ser.”

Quando você morreu vó, eu criei um canal de comunicação com você, mesmo sabendo que o alcance seria impossível, sabendo que você nunca vai ler Minha Avó Feirante.

Nessa manhã eu terminei de ler O Avesso da Pele, de Jefferson Tenório. Eu sempre li muito e você sempre gostou disso, sempre contou pras pessoas que eu era uma estudiosa, diferente. Isso sempre foi uma marca. Foi bom e ruim ao mesmo tempo, ser separada das outras da rua, mas ao mesmo tempo, querer ser como elas. Mas isso é assunto para outro texto. Você era racista vó, infelizmente fui entendendo isso aos poucos e, toda vez que tentava dialogar, a gente brigava. Você nem vacina quis tomar. Na última vez que te vi, foi em vão nossa conversa, não te convenci. Você não foi embora por um vírus, mas por uma doença sileciosa que foi tomando seu corpo. Sinto raiva até hoje de não ter sabido antes, de não ter a chance de exigir, de brigar com você para que lutasse para ficar aqui por mais anos e anos. Para que eu tivesse a chance de te contar como está sendo minha vida de professora. Para você rir as histórias engraçadas e ficar com raiva das histórias tristes, dos alunos rebeldes, como sei que você faria.

O ponto aqui vó é que esse livro me levou direto à você. O Pedro, que é narrador do livro, é um filho falando com seu pai falecido, assim como faço agora com você aqui, nesse texto. Ele vai desvendando e reiventando, através de fragmentos próprios, através das histórias dos outros, a vida de seu pai, o professor de português, Henrique Nunes.

No seu funeral, queria ter ficado mais, queria ter ouvido algo sobre você de todo mundo que estava ali. Queria ter conseguido falar. Mas ainda era pandemia, tudo foi muito rápido. Cheguei do cemitério, liguei meu computador e, mesmo molhando as teclas, transbordando de tanto chorar, ergui um memorial virtual para você. Do nada, sem nem conseguiur racionar por qual razão, eu senti que precisava digitar tudo o que sabia sobre você, tudo o que lembrava, como se você fosse me ouvir. Você deixou de ser vó, a morte é esse corte cruel e brusco.

Por isso esse livro mexeu tanto comigo, porque ele me levou para esse lugar solitário que é o luto, um sentimento complexo, que toma a gente e nos inunda de forma violenta, como se fosse uma onda daquelas que tem nas praias de tombo. Estamos ali no raso, vivendo nossa vida, numa aparente normalidade. Mas de repente, do nada, um cheiro, uma música, uma bacia de plástico vermelha, um dia de feira é disparador pra gente começar a sentir uma dor repentina e aguda no peito, ser tomado quase de assalto por um mar de sentimentos, desconsertar nosso passo tranquilo, nos tirar do chão, afogando a gente numa coisa que vai além da saudade. A saudade de um ausente, que nunca mais estará aqui. Você não é mais a minha avó, é minha avó-morta.

Esse sentimento que me tomou e o tema do luto foi o que me ligou de uma maneira muito forte ao Pedro. Terminei esse livro querendo abraçar alguém que nem existe. Tenório, autor de O Avesso da Pele, foi profundamente assertivo no tom, no ritmo dos capítulos, na descrição das ausências, das dores, dos afetos, em tudo. Um livro pungente, duro, mas permeado de amor e compreensão. Seu narrador é corajoso, toca nas feridas abertas, nas cicatrizes, afunda os dedos na pele, mergulha de cabeça e volta, continua, retoma, respira e volta. Como em This Is Us, a gente sabe que o Henrique morreu desde o começo, só não sabemos como foi. Mas o caminho e o trabalho do Pedro, de reconstruir seu pai, é o que mais interessa para nós leitores, uma jornada por atravessamentos intensos, de fronteiras entre o pai e o filho.

Enxergar nossos pais como pessoas é o primeiro passo para um grande desencantamento do mundo. Partimos para entendê-los de uma maneira honesta e fria, olhando para eles sem o conforto da luz amarela, mais quente e amena. Quando iluminanos nosso passado familiar e examinamos ele através de uma luz branca, mais direta, que revela manchas, cantos maculados, cascas e poeira, entendemos um pouco melhor sobre a gente mesmo. Conseguimos identificar a origem de certos comportamentos e dores, que passam a ser não só parte de quem a gente é, mas parte daquilo que carregamos dos nossos pais sem nem saber. Enfrentamos a mágoa e o ressentimento das coisas serem assim. Buscamos alguma aceitação em não podermos mudar nada do que aconteceu, algum conforto em não sermos culpados de algo, deles não serem culpados tampouco.

Na história de Tenório, soma-se o racismo estrutural da nossa sociedade, que altera mais ainda essa relação entre pais e filhos. Ao mesmo tempo que o autor desenrola esse passado, parece acolher atitudes de seus pais que o prejudicaram, porque compreendeu que, atrás de cada uma delas, existia um fio mais forte, sub-reptício, que operava na e sobre a subjetividadade de seus pais. O tom que o narrador adota não é da lavação de roupa suja, mas de uma busca profunda de situações que conformaram a sua vida e de sua família negra, na cidade de Porto Alegre, no Brasil. Memórias maculadas por um racismo que transforma as pessoas em nada além da pele. Daí ir pelo avesso, atravessar essa carga, essa fronteira criada pela branquitude horrorosa da nossa formação social brasileira:

“Mas elas nunca saberão nada sobre o que você tinha antes da pele. Jamais saberão o que você carregava para além de uma ameaça. Por isso, sigo recontando a tua vida, que também é um pouco da minha. Investiguei os teus afetos através dos meus. Eu aind não sei o que fazer com essa descoberta. Não sei o que fazer com essa verdade inventada. É inventando que consigo ser honesto (…) Eu queria ter morado num pensamento teu. Como uma forma de amor. Um amor entre pais e filhos (…)

PS: Desde 2020 eu não escrevo e não leio com a mesma intensidade de antes. Tenho sofrido com isso e hoje foi uma catarse conseguir escrever esse texto. Porque eu só sei falar de livros dessa forma, buscando na trama tecida por outrem enovelar a minha própria trama de vida. Porque sou atravessada pelos textos, a literatura move os móveis, os cacos, os fios dentro de mim. Obrigada Jeferson Tenório por trazer ao mundo essa história maravilhosamente escrita, nesse misto de dor e afago. Obrigada Hermi, por lamber minhas lágrimas, porque chorar no fim foi inevitável. Os cachorros sabem consolar de uma maneira única a gente. Obrigada vó, eu te amo e nunca vou deixar a trama do que foi sua vida morrer.

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