Taking Care: Foi minha babá quem fez tudo

Também sobre “Canção de Ninar”, de Leila Slimani

Jéssica Carvalho
Extra Literário

--

The Invisible Woman | Pamela Duffy

Essa frase é como um eco que ressoa pelo curto e potente livro “Canção de Ninar”, da autora franco-marroquina Leila Slimani. Já traduzido para mais de uma dezena de idiomas, ganhador do prestigiado Prêmio Goncourt e best-seller na França, chegando a vender 600 mil exemplares, o romance começa com uma grande tragédia — a babá Louise assassina Mila e Adam, filhos de seus patrões Myriam e Paul.

O leitmotiv pode espantar ou atrair de cara os leitores. Por que ler um livro que começa com um crime tão macabro? Em parte porque a literatura tem como um de seus propósitos chegar a lugares inóspitos e nos trazer novas perspectivas do que achamos conhecer; mas o interessante na prosa de Slimani é que, de forma alguma, temos um clima dramático e sensacionalista no desenrolar da história. A engenhosidade de frases e capítulos curtos, a construção dos perfis das personagens, da intimidade dessa família burguesa e de sua babá são revelados num ritmo ascendente e em camadas. Prevalece o equilíbrio e o espaço para o leitor respirar e refletir.

Mas só a forma não sustenta um bom livro, o que nos fisga também é a cadência e profundidade com que temas tão contemporâneos, como a maternidade, alteridade e família são tratados.

Myriam e Paul são jovens adultos com dois filhos — enquadro ambos nessa categoria, que hoje está tão difundida principalmente nas redes sociais, porque ela traz consigo sensações muito próprias da vida contemporânea atual: inclui toda a massa de pessoas entre os 23 e 35 anos, muitas vezes egressos da universidade, enfrentando sozinhos os boletos, responsabilidades e pesos de suas escolhas diante da vida. É um momento específico da vida no qual os sonhos e tudo o que acreditamos durante anos pode não estar se concretizando, e lidar com o novo e as frustrações advindas das incertezas é uma grande carga emocional pouco discutida.

O retrato de Slimani para esse espírito contemporâneo é muito preciso; é na sobrecarga que o mundo adulto vem se constituindo, de tarefas, de trabalho, de responsabilidades e papeis que são cobrados, um lugar sempre adiante, em que mal se respira e se tem tempo para viver e estar presente no momento presente. A popularidade de cursos de mindfullness não é a toa.

“A vida transformou-se numa sucessão de tarefas, de trabalhos a cumprir, de compromissos não desmarcáveis. Myriam e Paul estão sobrecarregados. Adoram repetir isso, como se esse esgotamento fosse precursor do sucesso.”. P. 99

Mas o problema em si não é a sobrecarga, nem de longe podemos enxergar esses dois jovens adultos de forma condescendente. O narrador é objetivo e preciso, não nos oferece opiniões ou julgamentos, mas demonstra em pequenos gestos e detalhes esse ambiente mental. A questão que se destaca é que ambos querem ter tudo sem abrir mão de nada, para que se chegue a algum lugar, construído socialmente como ideal.

“Percebeu que jamais poderia viver sem o sentimento de estar incompleta, de fazer as coisas mal, de sacrificar uma parte de sua vida em função da outra. Tinha feito um drama ao se recusar a renunciar ao sonho dessa maternidade ideal. Teimando em achar que tudo era possível, que ela alcançaria todos os seus objetivos, que ela não ficaria nem amarga, nem esgotada. Não faria o papel nem de mártir, nem de Mãe Coragem.” | P. 37

Por isso a necessidade de Louise, que deve ser indispensável e invisível. A babá se mostra cada vez mais o centro que sustenta a vida dessa família e nos faz pensar que, no fim das contas, ela é a babá de todos eles, não só das crianças.

“ À noite, no conforto de lençóis frescos, o casal ri, incrédulo, dessa nova vida que levam. Eles têm a sensação de ter encontrado uma pérola rara, de terem sido abençoados (…)

À noitinha, quando Myriam volta para casa, encontra o jantar pronto. As crianças estão calmas e penteadas. Louise evoca e satisfaz os fantasmas de família ideal que Myriam tinha vergonha de alimentar.”

Olhar para Louise atentamente, suas unhas, seu cabelo loiro, a gola claudine, os passos lentos, a voz infantil ao ler histórias, a sombra colorida que usa nos olhos. O toque frágil com que cuida das crianças, mas a força incrível que a permite mover objetos pesados pela casa. Observar sua obsessão com organização e limpeza, sentir junto com ela a dor de uma unha se partindo. Sentir nojo de sua mania de não desperdiçar um farelo sequer. Admirar seus dotes culinários, sentir pena por sua solidão de domingo (que é das mais atrozes), como diria Eliane Brum, domingo tem dentes. A vida toda de Louise é um domingo vazio, sem família, sem amigos, sem hobbies ou objetivos. Nem sequer ouve música.

O narrador é hábil em mostrar de diferentes ângulos a babá assassina. Regula como se faz com o abrir e fechar de uma torneira, às vezes devagar, deixando a água escorrer lentamente, às vezes de uma vez só, fazendo tudo jorrar e espirrar com violência. Assim são os rompantes de Louise, tão doce às vezes, tão maternal e acolhedora; em outras o carinho beira o sufocamento, o abraço aperta demais os ossos da pequena Mila. Os beijos quase sugam o bebê Adam para dentro de sua boca. E em outras vezes ainda, o grito sai, a mordida da criança quase lhe arranca um pedaço e os ossos do frango limpos em cima da mesa, cheirando a lavanda, dão a certeza de que tem muita coisa errada se passando com essa mulher.

Só Paul e Myriam se esforçam para não ver, não tomar nenhuma atitude. São dominados pela gratidão e conforto, embora por vezes admitam que ela os assusta. Não percebem o quanto são mimados e o quanto exploram da vida e do trabalho dessa mulher.

Louise é constituída de dores e pequenas e grandes humilhações, que são sempre represadas, como uma bola inflada que ela insiste em mergulhar no mais profundo de seu ser, segurando com força e impedindo o empuxo, e parece que por fim essa força vence, emerge e leva consigo a vida das duas crianças.

Nada justifica um ato atroz como esse. Nada é capaz de dar conta de nos fazer compreender, não é isso que “Canção de Ninar” traz ao leitor. Ele descortina as relações complexas que se desenvolvem entre a família e a babá, cuja profissão é dar cuidado e amor, cuja atividade está no limiar entre o profissional e o íntimo. Uma relação que tem longa duração, mas prazo determinado, afinal, as crianças crescem um dia.

Todos ali estão na beirada de algo que não é definível, racionalizável. Também temos a percepção de que o amor é feito de ódio e medo também, como bem disse Valter Hugo Mãe num poema.

Talvez o que mais permita entender o que está no cerne da questão de Louise, de sua personalidade e do lugar que ela chega ao final, é um poema de Bukowsky, veja abaixo:

“É essa multidão de trivialidades
que pode matar mais rápido que o câncer
e que sempre estão nos acontecendo
Não são as coisas grandes
que mandam um homem para o manicômio
Para a morte ele esta preparado
Ou o assassinato, o incesto, o roubo,
o incêndio, a inundação… Não
É a série constante de pequenas tragédias
que mandam um homem para o hospício”

Definitivamente, Canção de Ninar é um daqueles livros que ecoará para sempre na mente de seus leitores, como alerta, como aprendizado, instalando-se uma compreensão profunda dos limites que podemos chegar e fronteiras que podemos atravessar, ainda que possamos viver ignorando nosso lado sombrio.

Esse livro foi discutido no encontro de 09 de abril no Clube da Vila, e as reflexões aqui presentes são coletivas, o texto é só uma forma de registrar. O assunto sobre ele não se esgota, então deixe comentários. A apresentação utilizada está logo abaixo:

Fiquei pensando no quanto a vida interior de Vivian Maier é interessante, uma babá que passou sua vida inteira praticando e produzindo fotografias maravilhosas. “Só” sobraram quase 100 mil fotos que até John Maloof adquiri-las em um leilão eram completamente desconhecidas. Veja o trabalho dela:

--

--