Da maternidade

Também sobre a mulher que é minha mãe

Jéssica Carvalho
Extra Literário

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Duas fotografias em 3x4 da minha mãe quando jovem, em preto-e-branco.
Vulgo minha mãe, vulgo Carminha, para os íntimos. São fotos que arranquei de suas duas carteiras de trabalho

Conversas, numa família, tornam-se arqueologia linguística. Constroem o e mundo que compartilhamos, assentam-no em camadas em um palimpsesto, dão sentido ao nosso presente e futuro. A questão é quando, no futuro, reproduzirmos de novo a nossa fita da família, será uma história? Uma paisagem sonora? Ou tudo será entulho, barulho e detrito?

O Arquivo das Crianças Perdidas, Valéria Luiselli, pg. 38

Um tempo depois de ler toda a saga da tetralogia napolitana da escritora Elena Ferrante, eu viajei num dia das mães para o Rio de Janeiro com minha mãe. Era meu aniversário também. Conseguimos ficar em Copacabana, no hotel do Sesc e tivemos momentos muito significativos, já que foi a primeira vez que viajávamos juntas e sozinhas, uma na companhia da outra. Queria dar esse presente para nós duas, queria que ela voltasse ao Rio de Janeiro que tanto me descreveu durante anos, o lugar para onde foi quando partiu de Jaboatão dos Guararapes, no Recife, no início dos anos 1980.

Era só uma garotinha com 15 anos de idade que desembarcava na cidade maravilhosa para tentar a vida. Foi encontrar meu avô e minha tia, viveu em quartinhos de empregada, embalou os sonhos de filhos que não eram seus, esfregou a prataria e as taças de cristal até os dedos quase se esfacelarem. Vendeu sapatos e pães. Noivou, desmanchou. Viu muitos Carnavais, a Mangueira e o Império Serrano passarem, a Tina Turner também. Pegou um avião cargueiro e nunca mais deixou de ter medo de entrar num avião (não é normal que um bicho desse tamanho voe). Viu o marido de uma amiga explodir junto com o vazamento de gás, ajudou essa amiga a cuidar das órfãs. Viu outra amiga morrer de feminicídio. Teve aquela amiga travesti que o nome foi apagado pela memória, mas o cheiro dos salão e a lembrança de sua beleza ficaram. E o Escadinha, o bandido que ajudava a todos no Morro do Juramento. E no Irajá viu o Zeca antes de ser Pagodinho. Deixou tudo lá quando meu avô faleceu e começou outro capítulo aqui em São Paulo.

Uma vida inteira antes de mim. Percorremos muitas ruas e só a convenci a conhecer o Jardim Botânico, o Cristo e o Pão-de-Açúcar nunca lhe apeteceram, não tinha tempo no passado e a vontade passou. Nesse dia das mães eu acordei com um poema na cabeça, um poema que é um pedido de desculpas de uma filha por tudo o que a maternidade causa à uma mulher, à sua mãe. Especificamente à uma mulher-mãe migrante, que só teve ao marido numa terra estrangeira e depois os filhos, nunca a si mesma. Os horizontes de uma mulher nascida há três ou quatro décadas atrás era muito limitado e restrito. Ainda é, a opressão arruma novas formas sempre de se configurar. Feminismo é questão de classe sim, é uma luta travada por mulheres que tem esse privilégio de saber que podem lutar por algo, por sua própria voz. Reproduzo esse poema abaixo porque ele traduz tudo o que senti durante aquela viagem, a mulher que eu conheci nesse espaço-tempo que se criou ali nas areias de Copacabana, enquanto ela desfilava essas memórias olhando o mar…

Hoje, não só porque é dia das mães, mas porque é um assunto que atravessa os ensaios aqui do Extra, eu quis trazer uma história pessoal que só comecei a construir e conseguir narrar porque outras mulheres o fizeram em seus livros majestosos, quando trouxeram na ficção a complexa trama que existe na relação mãe e filha. Elena Ferrante, Valéria Luiselli, Carola Saavedra, Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus e Marilene Felinto são algumas das escritoras que mais escrevem sobre esse tema e mais atingem reflexões profundas sobre a maternidade e o que ela representa para a vida de uma mulher. Uma mulher tende a morrer para nascer uma mãe e hoje eu vejo que numa filha é preciso nascer um olhar de empatia e de imaginação, para que essa mãe também seja vista como uma mulher, como uma pessoa, não só como uma função.

Para todas as mulheres que são mães, para todas as filhas e filhos, para todas as mulheres que tem esse desejo e esse projeto de vida, eu dedico essas memórias e essas reflexões. E na verdade, quero terminar com um mini-dicionário amoroso das palavras que só minha mãe fala e que eu não quero se percam nunca da minha arqueologia linguística:

Lebréia: coisa velha

Chaleirando: fazendo um agrado

Pantinho: frescura

Bulideira: pessoa que revira tudo

Pirangueiro: mau-pagador

Jemelé: ela fala muito rápido sempre, e quando reclama então! Daí ficou Jé+Mulé e virou Jemelé

PS: eu amo essa música, te dedico Carminha: “Quero que um dia dês descanso aos teus medos…/ Pelo cordão sagrado do amor/Chegou a tua força a mim/E a luz que trago/É a herança do teu olhar/Cuida mais de ti meu farol…/Meu farol, minha mãe, meu farol…”

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