Do Desejo

Também sobre Me Chame Pelo Seu Nome, de André Aciman

Jéssica Carvalho
Extra Literário

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Desejo, sobretudo desejo, eletrificando o leitor, subindo pelas pernas. Assim é ler Me Chame Pelo Seu Nome, de André Aciman. Elio recorda, vinte anos depois, o que sentiu aos dezessete, quando conheceu Oliver, um dos vários pupilos de seu pai, que para sua casa foi revisar a tradução de sua tese para o italiano.

“Nunca me ocorreu que o que me fizera entrar em pânico quando ele me tocou foi exatamente o que surpreende as virgens ao serem tocadas pela primeira vez pela pessoa que desejam: o toque desperta terminações nervosas que elas nem sequer sabiam da existência e produz prazeres bem mais desconcertantes do que estão acostumadas a sentir sozinha.” (p. 24| posição kindle 190–193)

As primeiras experiências sexuais que temos ficam adormecidas e esquecidas pelos anos e ouvir esse narrador agoniado e intenso é recordar esse despertar. Seu olhar observa atentamente o corpo de Oliver com tanta proximidade que por vezes parece que vamos sentir o cheiro de Oliver. Nos perguntamos como Elio pode descrever tão minuciosamente esse passado, e a saída engenhosa é simples — tudo esteve registrado num diário mantido pelo narrador.

Todo o longo primeiro capítulo do livro arrasta-se entre o desejo e as inseguranças, como se ambos dançassem um tango, ora o toque e os indícios representam tudo e Elio tem certeza que Oliver também o quer, ora eles se afastam e tudo cai por terra, sentimos o mesmo que ele, que é tudo uma grande ilusão. Alguns leitores do clube Extra Literário relataram sentir dificuldades em aguentar Elio nesse torvelinho.

Quando comecei a ler depois da minha grande amiga Bruna Santiago insistir, eu mandava áudios no whatsapp para ela desesperada, dizendo pelo amor de Deus beija logo vocês dois. Nos tempos de hoje, de amores líquidos e efêmeros, as coisas acontecem numa velocidade maior e essa construção do desejo simplesmente não existe, as relações e paixões deixam de ser imprevisíveis. Não é algo negativo em si, mas ando pensando nesse esvaziamento e nessas etapas que se pulam nowadays.

“É claro que ele [Oliver] não tinha ideia do que se passava pela minha cabeça minutos antes, mas as faces redondas e firmes do damasco, com a covinha no meio, me lembravam do movimento de seu corpo se esticando até os galhos da árvore, aquela bunda firme e redonda replicando a cor e o formato da fruta. Tocar o damasco era como tocá- lo. Ele nunca saberia. Assim como as pessoas de quem compramos jornal, e com quem fantasiamos a noite toda, não fazem ideia de que aquela expressão em seu rosto ou aquele bronzeado em seu ombro exposto nos darão prazer infinito quando estivermos sozinhos.

A cena acima é icônica, o corpo de Oliver mistura-se com o formato da fruta, o desejo de Elio de avançar e mordê-lo, devorá-lo, acaba por tornar-se o nosso desejo.

O que Aciman engenhosamente produz para nos manter ligados em termos de enredo também é uma grande liberdade de pensar que ali os dois personagens homens são apenas dois corpos que se querem, nos lembrando que deveria ser assim, sem o peso do preconceito e da homofobia. Elio é um jovem extraordinário e acima da média e sua família simplesmente não vê problema algum no que ele está vivendo. Ele não cresceu sob o peso de sua sexualidade determinada por seu gênero, e suas hesitações não passam por esse filtro e esse peso, tanto que ele vive também experiências com Marzia.

Mas é uma história de amor? Isso é uma questão que levei para a discussão do livro. Aciman disse, em sua fala na Flip deste ano, que a palavra amor não é pronunciada por seus protagonistas, mas o livro é atravessado de referências literárias que explicitam uma didática do amor. Questiona o romantismo e a impregnação das almas perfeitas, das duas metades, mas não deixa de trazer ao leitor uma visão de que as ligações entre duas pessoas passam pela intimidade dos momentos compartilhados (compartilhar é uma palavra tão desgastada hoje, mas não sei utilizar outra), para além do envolvimento puramente sexual.

Oliver por vezes faz o papel que Ovídio fez com Dante, de guiar Elio nesse desconhecido e faz esse jovem rapaz ver o amor como algo que nos devolve algo de nós mesmos, sendo o outro o veículo para que possamos nos encontrar e ter boa dose de amor próprio.

“Eu queria ser como ele? Eu queria ser ele? Ou só queria tê-lo? Ou ‘ser’ e ‘ter’ são verbos imprecisos no emaranhado do desejo, em que ter o corpo do outro para tocar e ser o outro que desejamos tocar são a mesma coisa, apenas margens opostas de um rio que passa de nós a ele, volta a nós e a ele novamente, em um ciclo sem fim em que as cavidades do coração, como as armadilhas do desejo, os buracos de minhoca do tempo e as gavetas de fundo falso a que chamamos identidade compartilham uma lógica sedutora, segundo a qual a distância mais curta entre a vida real e a não vivida, entre quem nós somos e o que queremos, é uma escada em caracol projetada com a crueldade impiedosa de M. C. Escher.”

O amor é esse desfiladeiro entre subidas e descidas, abismos, maravilhamento e medo. Inverte a lógica e a segurança das coisas, ao mesmo tempo que nos faz pensar que é só isso que precisamos na vida.

Na segunda parte do livro Elio e Oliver partem juntos para Roma, uma viagem de despedida que estreita a intimidade entre ambos e introduz Elio num novo mundo. As vozes e o ritmo narrativo acompanham essa transformação do narrador, deixando o leitor com a sensação libertadora de sair de sua mente, de seus olhos, tudo torna-se mais veloz e cheio de contrastes.

As partes mais significativas giram em torno do lançamento do livro Se l’amore, do poeta que Elio já havia conhecido em B., Alfredo, que falam de sua experiência na Tailândia, quase como a Macondo de García Márquez. Num dos poemas declamado nessa noite temos uma boa chave para refletir sobre o amor e as relações — A Síndrome de São Clemente; há uma basílica em Roma com este nome, cujo território onde foi edificada é como um palimpsesto:

“Como o subconsciente, como o amor, como a memória, como o próprio tempo, como cada um de nós, a igreja foi construída sobre as ruínas de restaurações subsequentes, não há fundo definitivo, não há o primeiro de nada, apenas camadas e passagens secretas e câmaras interligadas, como as catacumbas cristãs e, logo ao lado, uma catacumba judaica”.

Tudo é mutável e repleto de camadas que se sobrepõem, chegando ao ponto de não enxergarmos o início, a fundação. A didática do amar é composta de um aprendizado prévio e cultural, mas também o que se vive no presente, que se inscreve em nós de forma permanente, ainda que não nitidamente. Oliver partirá e deixará em Elio as ruínas daquilo que tiveram, e ele estará vinte anos depois ainda elaborando esse encontro. Seguir adiante é sempre seguir carregando o que foi inscrito/ em nós indubitavelmente.

Essa parte do livro se conecta quase como uma continuidade com o que o pai de Élio diz a ele numa das conversas mais incríveis da história da literatura. É alguém que tomado pelo amor ao filho, lhe dá conselhos sobre o amor, mas essencialmente sobre nunca se recusar a viver, sentir e sofrer:

“No seu lugar, se houver dor, cuide dela, e se houver chama, não a apague, não seja bruto com ela. Arrancamos tanto de nós mesmos para nos curarmos das coisas mais rápido do que deveríamos, que declaramos falência antes mesmo dos trinta e temos menos a oferecer a cada vez que iniciamos algo com alguém novo. A abstinência pode ser uma coisa terrível quando não nos deixa dormir à noite, e ver que as pessoas nos esqueceram antes do que gostaríamos de ser esquecidos não é uma sensação melhor. Mas não sentir nada para não sentir alguma coisa… que desperdício”

Villa Albergoni — Giulio Ghirard — Locação do filme

“Há outras cenas: o silêncio pós-almoço — alguns cochilando, outros trabalhando, outros lendo, o mundo inteiro relaxado em semitons abafados. Horas celestiais, em que as vozes do mundo fora da nossa casa entravam tão suavemente que eu tinha certeza de estar cochilando. O tênis à tarde, banhos e drinques. A espera pelo jantar. Mais convidados. Jantar.”

O tempo lento e o descanso, um mundo sem obrigações e horas extensas ao sol, na piscina, no jardim. Isso também é algo relaxante do enredo que é estonteante de se ver no filme. As cores, os gestos, as luzes da casa, os cafés da manhã, Elio tocando piano. Não tem como não sentir inveja e querer estar ali à mesa com eles. É um deleite, um idílio.

O filme é uma realização muito feliz com relação ao livro, porque além do que só é possível de se realizar com a visualidade, o diretor consegue manter o clima de suspensão e de tensão entre Elio e Oliver. Armie Hammer e Timothée Chalamet são estonteantes e suas interpretações e química são impecáveis. O pai de Élio, interpretado por Michael Stuhlbarg simplesmente não poderia ser outro. A maioria dos diálogos foi mantida quase exatamente como escrito no livro.

Extras e indicações

  • Apresentação sobre o livro:
  • Hilda Hilst — Prelúdios intensos para os desmemoriados do amor — in Memória, Júbilo e Noviciado da Paixão [leia clicando aqui]

Agradecimento especial aos participantes da estreia do Extra Literário Clube de Leitura: Dora Mendes, Juliana Medeiros, Henrique Gerken, Tayná Barreto e Sonia Busato. Mais especial ainda a Bruna Santiago que deu a dica, ouviu dezenas de áudios e colaborou com as ideias e correções desse texto!

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