Profissão Avó

Também sobre Quarenta Dias, de Maria Valéria Rezende.

Jéssica Carvalho
Extra Literário

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Foto de Alex Harvey in Unsplash — avó? Oi?

Alice vai ser avó. Que notícia maravilhosa de Norinha. Que delícia um bebê chegando. Alice vai ajudar a cuidar. Alice era professora de francês e agora está aposentada. Natural, ser avó é natural como ser mãe. Querer cuidar do neto é natural, é gostoso.

Basicamente esse é o enredo do início de Quarenta Dias, da escritora paraibana Maria Valéria Rezende, ganhador do prêmio Jabuti em 2015. Alice é convocada para essa tarefa “natural” que é ser avó, sendo deslocada da Paraíba para o Rio Grande do Sul por sua filha norinha. Não sem resistência e ressentimentos aflorando durante essa transição. Nesse conflito, temos duas concepções de maternidade expostas em duas gerações: Alice foi mãe num tempo que era essa era uma escolha inexorável, não abriu mão de uma viagem à França para estudar, mas teve sua estadia encurtada por esse “chamado” materno. Sua filha, com uma carreira mais consolidada que a de sua mãe, feliz no casamento, escolhe ser mãe por lhe parecer algo que completa esse pacote, quase como se fosse mais um item desse ideal de felicidade. Norinha quer tudo sem abrir mão de nada, em seu egoísmo magoa-se por sua mãe não aceitar fazer parte disso.

Quando finalmente a convence, Alice depara-se sem sua casa, seus objetos, sua vida inteira na Paraíba, morando num apartamento comprado pela filha, que com esse gesto ainda tem a vantagem de manter distância e privacidade de sua mãe. Em certa altura, Alice compara sua nova morada a um tabuleiro de xadrez, pelas cores dos móveis e do piso serem entre o branco e preto e, tal como no jogo, algo externo moverá as peças dali em diante, não mais ela dona de sua vida e sua rotina. Essa transição entre o quente e frio também conduz de certa maneira a história, pois muitas vezes Alice está tomada pela raiva, mas aceita, abranda-se e a relação entre ela e sua filha vai esfriando.

O que esquenta o enredo é uma tarefa que a professorinha arruma para si: encontrar o filho perdido de uma conterrânea, Cícero Araújo. Dali em diante, como a Alice de Lewis Carrol, segue pistas, entra em becos e buracos e vai deixando-se permanecer na rua cada vez mais tempo, até que um dia simplesmente não retorna mais à sua casa e torna-se moradora de rua. Acompanhamos essa transição e esse vagar pela cidade em busca de um nome tão comum e percebemos o desejo muito intenso de invisibilidade, como se abandonar a si, abandonar o tabuleiro de xadrez fosse uma alternativa à liberdade dos papéis que lhe impuseram. Em certa altura nem parece mais que Alice está em busca de algo além da sua autonomia de não ser ninguém.

Temos nesses quarenta dias um retrato muito rico e diverso de outras personagens que também vivem na rua, do que é manter a higiene, como é alimentar-se, como é ser vista pelos outros quando não se tem nada, como são os laços de amizade e solidariedade, mas também de crueldade, violência e silenciamento. Também não deixa de aparecer o preconceito e a fúria contra os nordestinos, que uma cidade historicamente constituída com a imagem de branca e separatista prefere manter.

A engenhosidade de Maria Valéria entre forma e conteúdo é algo a ser destacado também, pois Alice escolhe para relatar suas angústias e desabafos, descarregando seus pensamentos é um caderno cuja capa tem uma barbie. O leitor vira interlocutor imediato, parece que a narradora dirige-se a nós leitores e não à boneca do caderno. A linguagem é carregada de coloquialismo, frases curtas, finais de capítulo sem ponto final e sentimos que o livro se escreve ao vivo, conforme os dias se arrastam.

As epígrafes também conduzem o clima do que será lido dali em diante, é um desfile de trechos muito bem escolhidos por Alice, profundos, certeiros, quase se escreve outro romance só com o que fica ali pairando antes de Alice começar a relatar seu dia-a-dia, começando com “oi barbie” ou “sentiu minha falta, Barbie, mais de um dia sem me ouvir?”. Uma das epígrafes que fala diretamente à questão da escrita-desabafo de Alice é a seguinte:

… passo agora o dia todo a escrever o diário. (…) Dá-me a sensação da onipotência, da onisciência, de ser dono dos meus dias, das minhas horas e minutos, da minha verdade enfim… Edson Amâncio

Também podemos perceber com essa necessidade da escrita por parte da personagem como muita vezes falar em voz alta não é sempre possível, Alice parece despejar as palavras no caderno como se fosse uma escrita-terapia. Um diário tem essa função também, diante da velhice e da solidão é um meio imprescindível para ela, quando já não se tem espaço e tudo que é familiar e conhecido, todos os seus hábitos lhe são retirados.

É um livro para se pensar no respeito pela autonomia das pessoas idosas, sobretudo as mulheres, que não precisam aceitar a profissão avó com tanto peso e normalidade. Também sobre a fragilidade dos papéis sociais, Alice foi parar na rua por escolha, mas também por uma desestruturação de seu mundo que certamente é violenta, uma crise que não soube lidar. Por fim, é um grande livro para se pensar nas pessoas em situação de rua, suas dificuldades, dores e invisibilidade. Não é à toa que ganhou um Jabuti e entrou para história da literatura como o livro “da freira que desbancou Chico Buarque!” (Maria Valéria também é um exemplo que o escritor pode tudo, não é o estereótipo da religiosa excluída do mundo e de suas questões, ela é muito, ela é uma das melhores escritoras brasileiras vivas!)

Importante ressaltar que quase todo texto escrito aqui é fruto de uma discussão coletiva realizada no Clube da Vila, que conta com leitores muito atentos e que emitem opiniões valiosas sobre os livros.

Quem quiser dar uma olhada na apresentação preparada para o encontro de março pode clicar no Prezi abaixo. Há entrevistas de Maria Valéria na FLIP e no Reverbera, canal do maravilhoso Marcelino Freire. Sintam-se em casa para comentar e compartilhem esse conteúdo da maneira que necessitarem!

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